Embora sejam frequentemente consideradas incomuns, as doenças raras (DRs) afetam cerca de 13 milhões de brasileiros, de acordo com estimativas do Ministério da Saúde. À medida que este se torna um assunto cada vez mais discutido, porém, as dificuldades também ficam evidentes. A falta de diagnóstico precoce, a inacessibilidade a tratamentos especializados e a escassez de centros de referência bem distribuídos pelo território nacional são apenas algumas delas.
No Brasil, doenças raras são enfermidades que afetam um número reduzido de pessoas em comparação com doenças mais comuns. A definição de prevalência para uma doença ser rara varia globalmente. Por aqui, a prevalência máxima estabelecida é de 65 casos por 100 mil habitantes. Para se ter ideia, o número estimado de pessoas com DRs no país é maior que a população da cidade de São Paulo, quatro vezes superior à de Salvador e nove vezes maior que a de Porto Alegre.
Mesmo que existam condições que afetam um número muito reduzido de pessoas, como a deficiência de isomerase de ribose-5-fosfato (RPI, na sigla em inglês), cuja prevalência é de um caso a cada 2,6 bilhões de pessoas, a Organização Mundial da Saúde (OMS), ao levar em conta todas as doenças consideradas raras já identificadas, estima que aproximadamente 300 milhões de pessoas em todo o mundo convivam com alguma doença rara.
Daí porque, para muitos especialistas, a noção de que essas doenças são raras é relativa. “Quando olhamos para cada uma das doenças raras, o número de casos parece pequeno, mas quando mudamos nosso olhar para uma perspectiva geral, podemos dizer que se trata de um número significativo e que merece atenção”, analisa o pediatra Linus Fascina, gerente médico do Departamento Materno Infantil do Hospital Israelita Albert Einstein.
Empecilhos para o tratamento de doenças raras
Identificar uma doença rara é, sobretudo, um dos primeiros empecilhos enfrentados por quem sofre com ela. Além de ser um assunto “novo”, tanto para a população geral quanto para muitos profissionais de saúde, a diversidade de doenças raras, estimada em mais de 7.000 tipos, desafia os métodos de testagem convencionais.
Ao contrário das enfermidades comuns, que têm rotas de diagnóstico bem estabelecidas e são baseadas em sinais e sintomas, grande parte das DRs é tão específica que cada caso pode ser tão único quanto uma impressão digital, exigindo uma análise detalhada por meio de sequenciamento genético. Ao ler o DNA, essa técnica identifica genes relacionados a determinadas doenças, possibilitando o desenvolvimento de exames e tratamentos personalizados.
Esse tipo de procedimento, contudo, enfrenta dois principais obstáculos: primeiro, a baixa frequência de doenças raras dificulta a realização dos sequenciamentos. Isso porque é preciso saber exatamente em qual parte do gene ocorre a alteração, o que requer um conhecimento prévio específico. lém disso, é uma técnica que demanda recursos tecnológicos avançados e de alto custo. “Esses desafios impactam diretamente a capacidade de estabelecer diagnósticos precoces e melhorar os prognósticos”, observa Fascina.
Isso quando não se trata de um caso inédito, ainda não descrito pela ciência. E mesmo nos quadros já conhecidos, obter o diagnóstico pode não ser de grande ajuda. “Atualmente, muitas doenças raras chegam a ser diagnosticadas, mas não dispõem de tratamento algum, restando à família e ao paciente aguardarem o desfecho de suas consequências”, relata Fascina.
Importância do teste do pezinho
Apesar desses obstáculos, a triagem neonatal, conhecida como “teste do pezinho”, tem um peso importante quando se trata da detecção de algumas DRs. Atualmente, o Sistema Único de Saúde (SUS) oferece dentro do cuidado neonatal a testagem para sete doenças em todo o Brasil. Desde 2021, o teste do pezinho em Minas Gerais rastreia 12 doenças. Em maio de 2022, o exame foi ampliado para 50 doenças, mas, por enquanto, poucas regiões foram contempladas com essa mudança, entre elas o Estado do Rio de Janeiro, o Distrito Federal e a cidade de São Paulo.
“É comum que famílias precisem deixar seu estado de residência para buscar centros especializados em outras localidades”, relata Patrícia Soarez, professora do Departamento de Medicina Preventiva e membro do Centro Integrado de Doenças Genéticas (Cigen) da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo (FMUSP). Segundo ela, esse processo recebe o nome de “odisseia diagnóstica” e pode levar anos.
Outro ponto destacado por Soarez é que o Brasil conta com um número reduzido de especialistas em genética: são apenas 342 geneticistas, distribuídos de maneira desigual pelo país, segundo a pesquisa Demografia Médica no Brasil 2023. “Na região Norte, por exemplo, estão localizados 1,5% dos geneticistas do país, enquanto a maioria se concentra no Sudeste. Isso nos permite dizer que, além de tudo, há uma desigualdade regional significativa no enfrentamento das doenças raras”, acrescenta a especialista.
Além da escassez de profissionais qualificados, a falta de uma estrutura adequada e a coordenação complexa necessária para o cuidado desses pacientes também são problemas significativos. Sem uma coordenação eficiente e uma rede de serviços bem estruturada, esses grupos enfrentam dificuldades adicionais. E aí a situação pode se agravar ao ponto de levar à judicialização.
Judicialização
Os custos elevados dos medicamentos para doenças raras, que podem chegar a milhões de reais, também levam pacientes e familiares a recorrerem à justiça para garantir que o financiamento do tratamento pelo orçamento público. Segundo Fascina, os portadores de doenças raras enfrentam desvantagens significativas em comparação aos que sofrem de condições mais comuns.
Isso ocorre porque, devido à baixa lucratividade desses medicamentos resultante da raridade dos casos, as empresas farmacêuticas investem pouco em pesquisa e desenvolvimento de medicamentos. Mesmo quando o fazem, os preços dos fármacos são altos. “Quando as indústrias perceberam que um único medicamento poderia custar milhões de dólares, entenderam que poderiam fazer apostas garantindo seus lucros como moeda de troca por qualidade ou garantia de vida para os pacientes”, avalia o pediatra do Einstein.
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Para ele, portanto, um levantamento de dados robusto sobre pessoas com doenças raras poderia mudar esse cenário. “Apesar de haver alguns levantamentos, ainda existe muita subnotificação. Essa questão com dados é uma dificuldade histórica. E, querendo ou não, quantificar é uma forma de gerar interesse e controlar a situação no nosso país”, analisa Linus Fascina.
O processo de judicialização, contudo, esbarra em barreiras educacionais e financeiras, acirrando ainda mais a desigualdade relacionada à trajetória dos pacientes com DRs. “Às vezes, a gente conversa com pacientes do SUS e eles não conseguem nem imaginar como acessar a justiça ou um advogado. Como mover um processo. Isso demonstra a necessidade de uma orientação”, relata Fernando Moura, gerente médico do Programa de Medicina de Precisão do Einstein. “Isso tudo se soma aos custos para contratar um advogado especializado nesse tipo de processo, o que não é uma possibilidade para todos”.
Corrida contra o tempo
Essa trajetória, que inclui acesso, diagnóstico e judicialização, resulta em uma corrida contra o tempo. E, muitas vezes, falha, já que os tratamentos para doenças raras frequentemente exigem a administração em idades específicas de forma a garantir a eficácia. Na percepção de Soarez, isso faz com que o processo de judicialização represente uma ruptura da política pública, em vez da efetivação de direitos.
Para ilustrar a questão, a professora cita o medicamento Zolgensma. Ele é um dos remédios mais caros do mundo e um dos principais solicitados por meio dos processos de judicialização, para tratamento de atrofia muscular espinhal (AME). A Comissão Nacional de Incorporação de Tecnologias (Conitec) recomendou a incorporação do Zolgensma no SUS, mas apenas para crianças com até 6 meses de idade. E que atendam a certos critérios.
“No entanto, por meio da judicialização, o medicamento foi distribuído para crianças acima de 2 anos, o que não tem indicação na bula”, pontua Patrícia Soarez. “Usada dessa forma, a judicialização desestrutura as políticas públicas e coloca em risco a sustentabilidade do sistema. Cada ordem judicial pode custar ao Ministério (da Saúde) entre 5 milhões e 11 milhões de reais, um uso totalmente ineficiente do recurso público”.
Aumentos dos custos em doenças raras
Segundo a especialista — que é coordenadora do grupo de trabalho Inovação em Doenças Genéticas e Raras: Equidade e Sustentabilidade do SUS, que tem como um dos focos a análise dos impactos econômicos das DRs para a rede pública —, a judicialização dos medicamentos para doenças raras frequentemente resulta em custos muito superiores ao que seria necessário se os tratamentos fossem oferecidos diretamente pelo sistema público.
A professora ilustra essa questão também com o exemplo do Zolgensma. Somente em 2021, gastou-se R$ 101 milhões em 46 ações judiciais. Esse montante, na opinião dela, seria suficiente para pagar o tratamento de todos os 189 bebês nascidos com AME tipo 1 naquele ano. “O gasto com judicialização não só é maior, como muitas vezes resulta em tratamentos fora do momento ideal e das indicações do medicamento, comprometendo a eficácia e segurança”, afirma a professora da USP.
Novos aliados
Os recentes avanços em sequenciamento genético e terapias gênicas se destacam como alternativas importantes para transformar a realidade de quem sofre com doenças raras. Isso vale tanto para diagnósticos mais precisos de condições já sequenciadas, como a AME, quanto para aquelas cuja identificação ainda é um desafio.
E a inovação é uma aliada. O Centro Integrado de Doenças Genéticas, da USP, buscará expandir o atendimento, acelerando o diagnóstico dessas enfermidades por meio da saúde digital. O centro vai estabelecer plataformas de telemedicina que favoreçam teleinterconsultas para o acompanhamento em conjunto com os médicos da atenção primária e secundária.
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Já no Einstein, Fernando Moura destaca dois programas significativos no tratamento de doenças raras. O primeiro é o Genomas Raros, que realiza o sequenciamento genético dessas condições em parceria com o Ministério da Saúde. “O objetivo é identificar a causa genética de doenças ainda sem diagnóstico claro, evitando que o paciente passe por uma bateria de exames sem respostas definitivas”, explica.
Parcerias
A outra iniciativa é a criação de parcerias entre a indústria farmacêutica e instituições de ensino, pesquisa e assistência, como o Einstein. É o caso do trabalho desenvolvido com a farmacêutica AstraZeneca para o diagnóstico precoce da síndrome hemolítica urêmica atípica (SHUa), um tipo de doença rara.
Segundo Fascina, o centro pretende ser um modelo replicável tanto na rede privada quanto na pública, oferecendo diagnósticos e contribuindo para o desenvolvimento de novas terapias gênicas. Como é o caso do Zolgensma. Até o momento, existem seis medicamentos desse tipo aprovados pela Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) no Brasil.
Outras ações promissoras, na opinião de Fernando Moura, partem de ONGs como a Casa Hunter. A instituição sem fins lucrativos visa garantir soluções públicas e sensibilizar o setor privado sobre doenças raras, reunindo profissionais de saúde especializados, pesquisadores e farmacêuticos. “Essas ações ampliam o debate e ajudam a conscientizar a população sobre as doenças raras“, observa. “Muitas famílias permanecem sem respostas e sequer consideram essa possibilidade. Ter essa noção edita o tempo a favor do paciente”.
Fonte: Agência Einstein