A Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) aprovou, na segunda-feira (9), o medicamento Mounjaro para uso na perda de peso no Brasil. Fabricado pela farmacêutica estadunidense Lilly, o remédio tem como princípio ativo a tirzepatida. E, assim como o Ozempic e o Wegovy (semaglutida) e o Saxenda (liraglutida), é mais uma caneta emagrecedora.
Mounjaro: o que muda
O Mounjaro já estava autorizado para uso no Brasil desde 2023, mas apenas para o tratamento do diabetes tipo 2. O fármaco, no entanto, só começou a ser comercializado no país em maio, em meio a uma demanda aquecida. E diante de um debate crescente sobre quem vai, de fato, se beneficiar da nova promessa da medicina metabólica.
Agora, com a autorização da Anvisa, o Mounjaro também poderá ser prescrito para o emagrecimento de pessoas sem diabetes. Os pacientes que podem ser beneficiados, no entanto, precisam ter Índice de Massa Corpórea (IMC) acima de 30 kg/m², o que caracteriza obesidade. Ou IMC acima de 27 kg/m², na faixa de sobrepeso, em conjunto com alguma comorbidade.
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Mudanças no estilo de vida
Fábio Moura, diretor da Sociedade Brasileira de Endocrinologia e Metabologia (Sbem), ressalta que essas drogas já se mostraram eficazes e seguras. Ele, no entanto, alerta que mesmo o tratamento com o Mounjaro ainda demanda mudanças no estilo de vida.
Tem que manter uma alimentação adequada, fazer exercício físico. Ou seja, não adianta só tomar esse remédio e não fazer a outra parte. E, por melhor que essas drogas sejam, elas têm seus efeitos colaterais, principalmente gastrointestinais, embora possivelmente tenham um efeito de proteção renal e hepática e sejam seguras do ponto de vista cardiovascular e psiquiátrico.
Fábio Moura, diretor da Sociedade Brasileira de Endocrinologia e Metabologia (Sbem)
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Nova geração de remédios
De acordo com o diretor da Associação Brasileira para o Estudo da Obesidade e da Síndrome Metabólica (Abeso), Alexandre Hohl, a nova indicação terapêutica para o Mounjaro “consolida a geração de medicamentos que podem modificar totalmente a vida das pessoas que vivem com excesso de adiposidade”.
“A tirzepatida é inovadora, pois utiliza um duplo mecanismo hormonal (GLP-1 e GIP), enquanto as moléculas anteriores utilizam apenas o GLP-1. Todas são moléculas eficazes e seguras, sendo que agora temos um arsenal terapêutico mais amplo e com isso mais pessoas podem ser beneficiadas, complementa.
O entusiasmo não vem do nada. O Mounjaro representa a nova geração dos chamados análogos do hormônio GLP-1. Essa é uma classe de medicamentos originalmente criada para tratar o diabetes tipo 2 que vem revolucionando a forma como a medicina aborda a obesidade. Ao combinar a ação do GLP-1 com a do GIP — outro hormônio intestinal envolvido na regulação do apetite e da glicemia —, a tirzepatida atua em mais frentes do metabolismo. E, de acordo com estudos, leva a perdas de peso superiores a 20% em adultos com obesidade.
É mais do que o já expressivo resultado obtido com a semaglutida, cuja média fica entre 13% e 15%. “A gente acredita realmente que esses medicamentos serão o futuro do tratamento da obesidade, do diabetes e de outras doenças”, afirma o endocrinologista Paulo Rosenbaum, do Hospital Israelita Albert Einstein.
Há esperança de que isso possa mudar a vida de muita gente e que, com o tempo, eles possam ficar mais acessíveis e beneficiar uma população maior.
Paulo Rosenbaum, endocrinologista e especialista em obesidade do Hospital Israelita Albert Einstein
Preço do Mounjaro
Mas, se os efeitos impressionam, os custos — financeiros, sociais e biológicos — ainda estão em aberto. O preço das canetas emagrecedoras ainda é uma barreira de acesso. Dependendo da dosagem, uma caixa de Mounjaro pode custar até R$ 4.058,86, de acordo com a lista de preço máximo ao consumidor da Câmara de Regulação do Mercado de Medicamentos (CMED). Já o Ozempic e o Wegovy não saem por menos de R$ 1.065,75.
O alto custo mantém o tratamento fora do alcance da maior parte dos brasileiros. “Quando falamos desses medicamentos, falamos só de gente rica para gente rica. Ainda mais pensando no uso crônico, afinal, 70% da população vive com dois salários mínimos. Então é um assunto bem elitista”, opina a endocrinologista Maria Edna de Melo. Ela é médica assistente do Grupo de Obesidade e Síndrome Metabólica do Hospital das Clínicas da Universidade de São Paulo (USP).
“Isso cria desigualdades no tratamento da obesidade e do diabetes, que são problemas de saúde pública”, concorda o endocrinologista Carlos André Minanni, do Hospital Albert Einstein.
Enquanto isso, pacientes, médicos e autoridades tentam equilibrar o potencial terapêutico com os riscos conhecidos e os limites da prescrição responsável, numa corrida em que o peso perdido pode não ser o único impacto a ser medido.
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Efeitos colaterais
Apesar dos avanços com os medicamentos à base de GLP-1, ainda existem algumas lacunas importantes que a ciência está buscando esclarecer. A maior parte dos pacientes tolera bem os análogos de GLP-1, mas os medicamentos não estão isentos de riscos.
Náuseas e diarreias
A bula aponta efeitos gastrointestinais como náusea, diarreia, vômito e constipação — relatados por até 18% dos usuários de tirzepatida e 24% dos que usam semaglutida. “Esses sintomas geralmente aparecem no início do tratamento e tendem a melhorar com o tempo, mas em algumas pessoas podem ser mais intensos. Por isso, o acompanhamento médico é fundamental para ajustar a dose e avaliar a tolerância”, explica Carlos Minanni.
Retinopatia diabética
Outro risco observado em estudos iniciais com semaglutida é a piora de casos já existentes de retinopatia diabética, especialmente em pacientes com diabetes. “O remédio melhora a glicemia muito rápido, e isso pode descompensar o quadro. Por isso é tão importante fazer o escalonamento da dose de forma gradual”, explica a endocrinologista do HC-USP.
Perda de massa muscular
Também preocupa a perda de massa muscular. Estudos indicam que entre 20% e 40% do peso perdido com GLP-1 pode vir de tecido magro, especialmente em indivíduos que não associam o tratamento à ingestão adequada de proteína e a exercícios de resistência. “Pacientes que perdem muito peso podem perder massa magra e até desenvolver osteoporose. Em idosos e pessoas frágeis, é essencial combinar o uso com musculação”, orienta Rosenbaum.
Em pacientes com obesidade e diabetes, esses medicamentos podem elevar o risco de pancreatite, inflamação do pâncreas que causa dor abdominal intensa e pode comprometer a digestão.
Os efeitos no longo prazo também são desconhecidos. “Ainda não temos dados suficientes sobre o que acontece com o corpo após muitos anos de uso contínuo. Queremos entender melhor se os benefícios continuam se mantendo e se há riscos que só aparecem com o tempo”, diz.
Crianças, idosos e gestantes
A segurança em populações específicas, como gestantes, crianças e idosos muito frágeis, é outra preocupação. “Isso limita nossa capacidade de recomendar o tratamento com segurança nesses casos”, completa Carlos Minanni.
Fábio Moura lembra também que as canetas não foram testadas em gestantes ou lactantes e, portanto, essas pessoas não devem usar o Mounjaro.
O maior alerta, no entanto, pode estar fora da bula: o uso sem indicação formal por pessoas que buscam emagrecer por estética, sem obesidade ou comorbidades. “As pessoas confundem o tratamento da obesidade com perder dois quilos. Isso estigmatiza o tratamento e atrapalha quem realmente precisa. Vira um problema mais social do que médico”, afirma Maria Edna de Melo.
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Retenção de receita
Em abril, a Anvisa anunciou que passaria a exigir retenção de receita para fármacos à base de semaglutida e tirzepatida, e estabeleceu um prazo de 90 dias para a validade da prescrição, numa tentativa de coibir a automedicação e o aumento indevido de dose— fator que eleva o risco de reações adversas.
A medida deve entrar em vigor no dia 23 de junho. “Quando o paciente compra sozinho, às vezes já aplica uma dose que só deveria ser usada daqui a três meses. E isso aumenta o risco de efeitos colaterais mais fortes”, alerta a endocrinologista da USP.
Remédio no SUS?
O debate sobre a inclusão das canetas emagrecedoras no Sistema Único de Saúde (SUS) segue lentamente. Na segunda-feira (9), a Comissão Nacional de Incorporação de Tecnologias (Conitec) abriu uma consulta pública para receber opiniões sobre a inclusão da semaglutida (princípio ativo do Ozempic e do Wegovy) no SUS.
A consulta pública faz parte da avaliação da prescrição do Wegovy 2,4 mg para pacientes com obesidade, mas que também tenham histórico de doença cardiovascular e mais de 45 anos. A classe médica e a sociedade civil podem se manifestar sobre o tema até o dia 30 de junho. Depois, as contribuições vão ajudar a embasar um parecer da comissão, recomendando ou não que o medicamento seja incorporado ao SUS.
Em maio de 2024, a Comissão Nacional de Incorporação de Tecnologias no SUS (Conitec) negou dois pedidos: um da Novo Nordisk, fabricante do Ozempic, para incorporação da semaglutida a pacientes com obesidade e risco cardiovascular; e outro da Associação Brasileira para o Estudo da Obesidade e Síndrome Metabólica (Abeso), com apoio da Sociedade Brasileira de Endocrinologia e Metabologia (SBEM) e da Sociedade Brasileira de Diabetes (SBD), pedindo a inclusão da liraglutida.
Na recusa, a Conitec alegou os altos custos do medicamento avaliados em até R$ 7 bilhões em cinco anos. Mas a Novo Nordisk argumenta que a adoção do medicamento pode reduzir custos de tratamento de doenças crônicas associadas à obesidade.
Uso das canetas emagrecedoras pelo Brasil
Por enquanto, a semaglutida não é oferecida por nenhum serviço público de saúde, mas uma substância semelhante, a liraglutida, é utilizada em cidades de Goiás, Distrito Federal e Espírito Santo.
A semaglutida também faz parte de protocolos de tratamento do Instituto Estadual de Diabetes e Endocrinologia do estado do Rio de Janeiro (Iede), e do Hospital das Clínicas e do Instituto da Criança da Universidade de São Paulo.
No começo deste ano, a Prefeitura do Rio de Janeiro anunciou que pretende incorporar a semaglutida a um novo serviço de tratamento da obesidade, a partir do ano que vem.
Como funciona
As canetas emagrecedoras que hoje lideram a revolução no tratamento da obesidade e do diabetes nasceram da descoberta do papel dos hormônios intestinais no controle do apetite e da glicemia.
Um dos principais é o GLP-1 (glucagon-like peptide-1), produzido em resposta à ingestão de alimentos. Ele estimula a secreção de insulina, inibe o glucagon (hormônio produzido pelo pâncreas que tem a função de aumentar os níveis de glicose no sangue) e retarda o esvaziamento gástrico, prolongando a saciedade.
O primeiro análogo sintético do GLP-1, a exenatida, chegou ao mercado no início dos anos 2000. Desde então, as moléculas evoluíram em potência e praticidade. Já a liraglutida, de uso diário, oferecia resultados mais consistentes. Depois vieram os compostos de aplicação semanal, como a dulaglutida e a semaglutida — essa última já indicada também para perda de peso.
A gente viu uma evolução em termos de facilidade posológica e na perda de peso causada por medicações.
Maria Edna de Melo, endocrinologista da USP.
A eficácia ganhou projeção mundial após a publicação do estudo STEP 1, no “New England Journal of Medicine”, em 2021. O ensaio mostrou que adultos com obesidade perderam, em média, 14,9% do peso corporal com semaglutida semanal — logo, mais do que o dobro dos resultados de intervenções anteriores.
Mas o impacto clínico vai além da balança. Segundo Melo, a perda de peso funciona como um ponto de inflexão, porque costuma desencadear o controle de outras condições. “Alguns estudos mostram que a semaglutida tem relação com a redução do risco cardiovascular”, afirma.
A partir de março de 2024, essa indicação passou a constar na bula da semaglutida injetável de 2,4 mg (Wegovy), aprovada pela Food and Drug Administration (FDA), agência que regula e aprova medicamentos, vacinas e alimentos nos EUA, para reduzir eventos cardiovasculares em pessoas com obesidade e histórico de doença cardíaca — mesmo sem diagnóstico de diabetes.
Saúde mental
Outros órgãos e sistemas também parecem se beneficiar do uso contínuo dessas medicações como o Mounjaro. Em estudos clínicos e observacionais, foram notadas melhorias em casos de apneia do sono, esteatose hepática (acúmulo de gordura no fígado) e até osteoartrite (doença crônica que causa o desgaste da cartilagem das articulações).
Há ainda pesquisas em andamento sobre os efeitos na saúde mental. Um estudo publicado em abril no “JAMA Neurology” associou o uso de agonistas do receptor de GLP-1 a uma redução significativa no risco de demência e comprometimento cognitivo, em comparação com outros tratamentos para diabetes tipo 2. Os efeitos neuroprotetores estão sendo testados também em quadros de Parkinson, dependência química e depressão resistente.
Câncer
Um dos estudos mais recentes, apresentado no Encontro Anual de 2025 da Sociedade Americana de Oncologia Clínica (ASCO, na sigla em inglês), acompanhou mais de 170 mil adultos com obesidade e diabetes nos EUA. Os dados mostram que o uso dos análogos esteve associado a um risco 7% menor de desenvolver cânceres ligados à obesidade — entre eles, os de cólon, fígado, estômago, mama e endométrio — em comparação com pacientes tratados com inibidores de DPP-4, outra classe de antidiabéticos.
Entusiasmo com cautela
Embora sem comprovação de causalidade, os autores consideraram os achados “reconfortantes” e apontam, pois, que essas moléculas podem, no futuro, ter papel também na prevenção oncológica.
“A medicina tem recebido essas descobertas com entusiasmo, mas também com cautela”, pontua Carlos Minanni. “É importante lembrar que todo novo uso precisa de muito estudo para garantir segurança e eficácia. O lado positivo é que estamos entrando em uma nova fase de tratamentos mais integrados, que cuidam do corpo como um todo — e esses medicamentos (Ozempic, Wegovy, Saxenda e Mounjaro) fazem parte dessa revolução.”
Fontes: Agência Brasil e Agência Einstein